top of page

Machina - Parte um


Uma viela escura em uma cidade industrial. Metal e poluição. Verde lodoso e sujeira úmida pintam seu piso. Seu formato é similar a um balão vítreo de laboratórios químicos.

Tinha odores que lambiam com línguas reptilianas de fumaça esmeralda e grudavam viscosamente nas frestas retangulares do meio-fio da calçada baixa.

Na sua entrada, eram audíveis os passos da pobreza e da falta de tempo dos homens daquele lugar. Os giros ferozes das máquinas domésticas e de locomoção soavam agudos enquanto queimavam fumaça branca.

Balburdia e gritaria. Papel queimado e cinzas. Comida, muita comida em bocas descuidadas. Os alimentos descartáveis como a vida, tomavam o rumo do chão sujo e metálico que via limpeza com uma mínima frequência. Maus sujeitos buscavam afanar desesperadamente trocados dos transeuntes, na esperança de satisfazer seus desejos químicos, já os bons sujeitos, tinham outros motivos, um sincero instinto de sobrevivência e bocarras famintas.

Os prédios se estendiam verticalmente de maneira colossal, de forma que, dos pontos mais baixos da cidadela, não era possível se observar o céu. Pobres e operários poderiam morrer sem algum dia contemplar o brilho do sol, nem a magia das estrelas. Não bastasse isso, a poluição era tão densa que dava a cidadela um aspecto sombrio e nebuloso, fosse dia ou noite.

A viela na verdade era um lixão bem imundo. Lixo industrial de uma fábrica de máquinas. Parafusos; engrenagens; comida; dedos; pés; braços e pernas. Tudo que não fosse necessário para uma boa ferramenta de trabalho escravista utilizar.

Ali naquele beco a escuridão só não era total devido a presença de um pequeno lampião mecânico que girava com sua engrenagem úmida e embebida de querosene. Iluminava de forma duvidosa e oscilante com sua cor de cobre sem brilho.

As horas naquele lugar eram de precisão cirúrgica. Trinta e sete minutos haviam passado desde que a máquina de lixo fizera o seu primeiro despejo do dia. Um mendigo esgueirou-se pelos restos de lixo em sua famélica situação e pelo seu respirar fazia dias que não botava nada sólido na boca. Seu aspecto sujo regurgitava dejetos de entranhas mais sensíveis. Apanhou então sem vacilar um pedaço grosso de carne e o sangue escorreu frio pelo seu braço esquerdo. Limpou o punho na calça suja removendo o excesso de líquido escarlate e então, enrolou a carne dentro de sua capa cheia de fuligem.

No fim da rua a máquina de lixo começava a se pronunciar. Era um barulho mecânico de engrenagens bem lubrificadas e rangia metalicamente enquanto vinha em seu compasso lento em direção à viela escura. O mendigo ao escutar o som, saiu correndo pela lateral do meio-fio.

Era um aglomerado de peças e engrenagens com detalhes em cobre, um conjunto de equações sem falhas em sua simples ação. Tira lixo, bota lixo, bota lixo, tira lixo. Tóxico ou orgânico; Metal ou madeira. Não serve vai para o lixo.

Ao chegar à entrada da viela girou em torno do próprio eixo e entrou de ré no trecho fechado. Não existia outro espaço que não fosse para sua passagem, assim sendo, saiu arrastando e esmagando tudo que existia ou estava de passagem naquela entrada do beco. Sons úmidos e ganidos agonizantes; Pequenos ratinhos; grandes ratazanas; o rabo de um gato que se salvou por um segundo; Muitas pedras e um pobre de um faminto que não tivera sorte de fugir a tempo do movimento metálico da máquina de lixo.

A máquina para e a tensão brusca faz a cabine traseira balançar. Um som estridente pia dentro do motor central. Uma luz vermelha passa a piscar energeticamente na lâmpada traseira. A porta traseira começa a abrir-se lentamente e deixa um cheiro forte de carne e óleo subindo ao céu.

De cima para baixo, a grande porta de metal vai descendo e o retângulo de aço que carrega o conteúdo vai pendendo na diagonal. O peso do lixo vai pressionando com força até que começa a pingar lentamente por cima da grande porta. Lento, lento, até que vira por completo e, como uma cachoeira, despejando sua força violenta contra o canto já cheio de lixo.

Pedaços de metal; objetos moles; carnes esfacelando-se entre as estruturas metálicas; muita comida podre aberta em latas vencidas. A porta e a cabine retangular então começam a fazer o movimento reverso, até que a luz vermelha finalmente se apaga e a máquina segue para fora da viela.

Por entre uma fresta escura, bem entre um parafuso de quarenta centímetros e uma lata de feijão que pinga um soro podre, um olho piscava lentamente. Lento e sem compasso, era um olho azul anil e com o cílio superior banhado em vermelho. Foram precisos alguns segundos e aquele glóbulo ocular parou sem vida e ficou ali aberto, misturado com um ar de pavor e culpa.

Um pouco abaixo dessa fresta, no momento em que o olho morreu, um gemido agoniado teve seu inicio. Era um choro de recém-nascido. Por baixo daquele lixo alguma coisinha pequena bradava a chorar desesperadamente.

Um par de mendigos acabara por adentrar a viela em busca de alimento e assim como aquele pobre ser escondido em meio ao lixo, tinham uma fome visceral e primitiva. Estavam dispostos ao que fosse necessário para obter um pedaço de carne. Começaram a caçar o lixo recém-depositado ali, até que rapidamente ouviram um barulho que destoava dos sons de costume.

Naquele dia, sangue seria derramado.


© 2023 por Amante de Livros. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page