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A visita



O dia não começou bem. Atrasado, corro de um lado para o outro da casa realizando meias tarefas. Meio banho, meio copo de leite, meia tigela de cereais. Tive a pior noite da minha vida. Não, na verdade já venho tendo noites assim há alguns anos. Me recordo da primeira vez que tive essa sensação.


Eu tinha doze anos de idade e estava eufórico com as férias do meio do ano. Todos os anos eu passava as férias no sítio da minha avó. Família grande é festa na certa. Muito espaço, árvores, um açude e muitos primos são a combinação perfeita. Passávamos os dias correndo pelo sitio, inventando brincadeiras e jogos até o cair da noite. Na hora de dormir era muito fácil me entregar ao sono depois de um dia inteiro gastando energia. Normalmente minhas noites de sono eram tranquilas, mas naquelas férias isso ia mudar.


Última noite no sitio. Logo depois do jantar fui dormir. O sono veio rápido. De repente acordo. Abro os olhos. É noite ainda. Sinto como se poucas horas tivessem passado. Tento virar para o lado, ficar mais confortável, mas algo estava errado. Não conseguia me mexer, não consegui falar. Minha língua estava pesada e dormente como se houvessem aplicado aquelas pomadas anestésicas que os dentistas usam. Meu corpo parecia ter sido amarrado com correntes pesadas. O rosto paralisado, dentes serrados, apenas os olhos respondiam aos meus comandos, até mesmo respirar era difícil. Uma sensação de agonia, de desespero tomou conta de mim. Olho para o lado e vejo meus primos dormindo tranquilamente, não consigo chama-los, só posso olhar para eles e torcer que meu olhar fosse, de alguma forma, sentido. Movo meus olhos e, nesse momento, desejo que essa, a única parte do meu corpo que ainda responde aos meus comandos, também estivesse paralisada. Vejo no quarto algo que, mesmo tendo feições humanas, não classificaria como tal. Um corpo flutuava rente ao teto. Braços compridos que terminavam em longas unhas pontiagudas; cabelos negros e falhos; a pele enrugada aparentava estar podre, como peixe estragado; os olhos eram completamente brancos e leitosos, e a boca apresentava dentes grandes, tortos e amarelados. Então a criatura se aproxima. Desce lenta e maleficamente em minha direção, como se examinasse cada centímetro do meu corpo. Me encontro frente a frente com o mal, tão próximo que conseguia sentir o fétido aroma de leite azedo saindo de sua boca.


Medo, agonia, desespero. Não consigo gritar, não consigo fugir, não consigo pedir ajuda. Sinto como se tivesse mergulhado em um lago congelado e não conseguisse voltar a superfície. Fechei os olhos com força, na esperança de que a criatura sumisse. Uma eternidade se passou enquanto eu estava imerso naquela experiência sombria. Quando finalmente consigo me mexer, gritar, chorar, o mal havia ido embora. Pouco mais de um minuto havia se passado, mas fora o suficiente para marcar minha vida. Meus pais tentavam me confortar dizendo que havia sido apenas um sonho ruim. Meus primos tinham medo de mim, achavam que eu via demônios. A despedida das férias não fora como planejei.


Hoje sou um adulto de responsabilidades. Trabalho, estudo. Levo uma vida normal. Minhas noites de sono geralmente são revigorantes. Mas, de tempos em tempos, ainda tenho a mesma sensação, passo pela a mesma agonia, recebo a mesma visita maléfica durante a noite. Após idas e vindas a psicólogos consegui entender que qualquer pessoa pode passar pelo que eu passei. Algumas talvez nunca sintam isso, outras quem sabe uma única vez na vida. Eu sou visitado com mais frequência; visitado por um demônio; um demônio chamado paralisia do sono.


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