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Dois homens

  • Júlio Santa Rosa
  • 18 de set. de 2015
  • 7 min de leitura

Mergulhei em uma música triste naquela noite, era uma sonoridade fúnebre, o canto da partida. Um último aperto naquela mão gelada, a vida por um fio que ao final da tarde foi cortado.

Eu só queria uma explicação, não entendi sua partida!

“Você não me preparou para a saudade velhote” pensava sentado na escada de incêndio do hospital. Com as lágrimas secas e travadas fugi do quarto em choque com tal fato. Minha cabeça era pura confusão e eu ainda conseguia me sentir pior sentado naquele pedaço escondido do hospital, sentado e conseguindo comer escondido.

O telefone tocou. Onde estaria o filho querido? Sai em silêncio e mesmo sem entender meu papel me fiz de forte, de fortaleza e abracei minhas responsabilidades.

Não meu velho, você não me preparou!

Durante a noite fria e solitária do meu quarto eu chorei feito um bebê, lágrimas desesperadas por sua partida, dor e pavor da solidão e da vida que você me deixou para construir.

Eu sei que você realizou sua obra, mas porque não esperou para apreciar as minhas?

Admirei as suas, as nossas fotografias e tentava capturar alguma resposta para o momento de nossa trajetória em você me ensinou sobre o que é viver. Tentei achar em vão e na madrugada solitária e depressiva encontrei a derrota. Tomei um banho e ainda me sentia impregnado pelo odor de hospital. Fico sentado na cama, no escuro do meu quarto. Não quero ninguém por perto, fui forte demais perante os outros, agora, só quero entender.

Deitei silenciosamente para não alertar os outros de minhas lágrimas, amarguras e tantas lembranças. Eu tinha você para indicar-me o que é ser homem, você me deixou um fardo o qual não estava pronto para lidar. Minhas pálpebras finalmente se renderam e sem perceber a tranquilidade chegou a meus ouvidos, depois em meus olhos e por último e mais importante, em meu coração.

Dois homens andando na beira de uma praia deserta, sem direção, sem passado nem futuro, só o que tinha de ser. Pés descalços e dedos molhando com as ondinhas baixas que espumam como sabão e lambuzam a areia branca. Noite fria. A lua brilhava poderosa com sua luminosidade mágica e feminina, seduzindo o mar que elevava suas ondas para abraçar a imagem daquele corpo celeste. As estrelas manifestam-se em maestria como ninfas dançando ao redor de um brilho maior. Um cenário que talvez jamais se repetisse. Um sonho que se sonha só e uma única vez. O som do vento sibila forte e dengoso eriçando os pelos dos braços. O tempo é um filtro em ciano e cinza, com sabor de madrugada.

- Porque tinha que ser assim? – sussurra um dos homens, baixinho e para si.

- Dos mares que naveguei esse é sem dúvidas o melhor, quando você fizer tudo que tem para fazer entenderá – Disse o outro homem de forma serena.

- E aquela nossa última conversa? - Completou o primeiro homem para o silêncio profundo e noturno. E de forma que contivesse suas lágrimas se calou, não necessariamente ansiando por uma resposta.

Eles caminharam em silêncio, lentos e naturais, sem roteiro ou propósito, e por longos minutos aproveitaram a caminhada e a tranquilidade que aquele vislumbre frio lhes dava. Eram quatro pegadas nuas na praia, os homens vestiam roupas claras e simplórias. A veste do homem mais velho era completamente branca e brincava contra o vento, pura e profunda, nunca antes usada. O outro vestia uma roupa branca mais envelhecida, um pouco pesada e não era sedosa, assemelhava-se a uma lã grossa e pesada ao ponto de negar o convite da valsa do vento.

O mais velho tinha uma barba grisalha e volumosa, destacando seu bigode estranhamente familiar. O jovem tinha barba curta e desmedida com seus pelos negros e cheios de falhas. Uma barba em busca da outra em um livre entendimento masculino do que uma barba deveria representar.

Os dois homens andavam pela praia. Um era admirado pelo outro que se contentava em ser um mero ouvinte da vida, da natureza; sabia que hoje era dia de plateia, estava lá despido de sua juventude e energia, disposto a apreciar a serenidade do velho.

O jovem de barba inconstante passará a vida vagueando em discursos complexos e durante muito tempo criará para si uma imagem falsificada do que deveria ser uma visão completamente diferente do que a vida desejara.

Isso é um talento dos homens, buscar filosofia onde não existe espaço para filosofar, onde não existe o ser, onde simplesmente se compreende a necessidade do existir e que isso de fato nem se chama necessidade. Simplesmente é. Tudo que o jovem queria era simplesmente ser, queria um mentor para si, alguém que lhe guiasse pelo caminho da sabedoria.

Verdades solitárias não tem peso algum, a vida precisa de perguntas dançando de mãos dadas.

Cauteloso, o jovem retoma o diálogo, desejando ser retribuído em suas dúvidas, ansiando dialogar com velho e não monologar ao vento.

- Como é do outro lado? – perguntou o jovem.

O velho falou sem pressa de ser escutado ou obrigatoriedade de tecer qualquer comentário, falou com certa sutileza:

- Diferente de tudo para ser sincero... Lembra-se de todo aquele peso? – E o vento talhava a cantar junto com a voz do homem – Não sinto mais, nunca estive tão feliz.

- Mesmo tendo deixado tudo para lá? – repreendeu o jovem.

- Que tudo? – calmamente respondeu o homem – Tudo que tinha a ser feito aconteceu. Você está exatamente onde eu queria que estivesse pronto para carregar o que é meu. Lembra-se daquela última canção?

- Espírito enche a minha vida – E o jovem soltou um riso pequeno e natural- como poderia esquecer?

- Aquela canção enluva meu ser, tão simples, tão completa, não poderia ter escolhido outra canção para me despedir – Disse o velho vacilando em um doce sorriso.

Continuaram a andar tranquilos ao som do oceano até que pararam por um momento para apreciar o horizonte. Era como uma linha que se esvaia em silêncio, sem delimitar sua profundidade. Uma nota em uníssono a ser apreciada.

- Onde estou não existe tempo nem saudade, na verdade só estou vivendo em harmonia, deitado na minha rede límpida, num sono gostoso. Não é perfeito? – Disse o velho que, nesse momento não mais parece um velho, mas um sábio.

- Queria ter tido oportunidade de realizar mais algumas coisas com o senhor – Lamenta-se em um pranto tímido aquele jovem rapaz – Me recordo de nossas conversas, foram marcantes, tão qual a chicotada sobre a pele que outrora se deve perdoar.

Sentou-se sobre a areia fofa e molhada daquela praia e cruzou os braços perante aquela riqueza da natureza, o jovem rapaz repetiu sua atitude em tom cordial e respeitoso.

O velho deslizou a palma da mão suavemente sobre a areia e pegou um punhado para si. Em movimentos filosóficos e profundos fez aquela areia lentamente deslizar por entre seus dedos.

Refletindo sobre aquele punhado branco teceu palavras ao jovem e as estrelas:

- Tão lindo, tão simplório, tão expressivo, mas no fim o que resta a não ser o nada em minhas mãos? – O velho olhava para o jovem enquanto falava – Olhe todos esses grãos que foram ao chão, parecem tão grandes e importantes não é?

O jovem admirava as mãos calejadas daquele homem.

- Chegam a massagear meus dedos – continuou o velho – basta deslizar dedo sobre dedo. Andamos durante toda a noite e passamos nossos pés por milhares e milhares desses grãos e não podemos simplesmente conta-los – sua voz era pausada e sinfônica – Não conseguimos entender uma coisa tão simples: Nós somos esses grãos.

O jovem escutava, em silêncio, o velho detalhar cada palavra e expressão daquele rosto, não queria que nada passasse em branco ou ficasse guardado ao vento.

- Queremos ser tão importantes, mas não somos nada mais que grãos de areia. Não somos de fato o que gostaríamos de ser, apenas nascemos com uma missão a cumprir. Sei que parece simples falar, mas, de fato não é. Tudo pode terminar e a jornada não ser concluída. Somos eu e você exatamente como a vida, passando e pisando sem dar a mínima atenção a areia dessa praia.

E o jovem sorriu para aquele homem de boa barba. Detalhou o olhar e boca, as feições sisudas de seu rosto o nariz marcado e grosso, os cabelos grisalhos e encrespados. A mesma face, porém com palavras que nunca haviam sido ditas. Em qualquer outro momento possivelmente ele não aceitaria ou simplesmente duvidaria daquelas palavras, mas ali naquele lugar, daquela maneira, tudo fazia sentido.

- Nunca tivemos uma conversa tão profunda – disse o jovem de barba inconstante – quer dizer, não sinto nem vontade de falar, o senhor nunca me ensinou tanto em tão pouco tempo.

- É hora de abraçar o irreal e a verdadeira verdade – disse o velho – não existe o eu, nem você, tudo acabou e em algum lugar tudo está começa de novo, nem começo, meio ou fim, só um vazio profundo.

- E não se esqueça de que existe um vínculo único em nossa eternidade, partilhamos sorrisos, alegrias, mas acima de tudo partilhamos nossas lágrimas.

O homem de boa barba enlaçou o outro em um terno abraço, e o jovem teve seus pés banhados por lágrimas suaves. Entendeu as primícias da saudade e controlou os leões de seu coração.

Tateando então de forma suave o seu rosto, vê que não existe mais aquela barba malfeita, existe um rosto limpo e novo, rosto de quem acabou de nascer.

- Obrigado pai.

Um homem sentado à beira mar. Levanta e caminha lentamente em direção ao oceano profundo, sem ondas e sereno, sabe que nunca vai poder ter aquilo que não existe e que o passado não passa de contemplação. Ele nada lentamente e com sorriso na alma, e passa as pequenas ondas que o mar sereno produz.

Move seus braços até não existir mais onda, até onde a tranquilidade pode nos engolir. Relaxa os braços e aceita a morte.

Existe alegria, não dor. Não existe mais o homem, o oceano já o tomou para si, mas a magnitude da compreensão é o que a vida levou para si, sentimento que só a morte pode nos trazer. Uma mensagem fica vagueando pela eternidade.

Não existe homem. Não existe saudade. Só existe a verdade. Não existe pergunta alguma. Não somos nem seremos maiores que um grão de areia.


 
 
 

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