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Madame Mazu


Não costumamos ter fortes lembranças do começo de nossa infância. São profundas e estão guardadas bem escondido em algum vale profundo de nossa mente.

Encontro-me deitado sobre um divã de couro amarronzado e confortável em um consultório de psicologia, tentando descobrir de que porque duas coisas ultimamente geram insônias e crises de pânico. Eram ocasionais, mas a frequência com que se repetem tem me deixado assustado.

O silêncio que precede o desligar de televisores e trincos de porta se fechando, começa com um suor gelado e um tremor na espinha, até que vem o blecaute.

Depois de alguns meses de terapia muita coisa não funcionou e o psicólogo disse que tentaria algo novo. Deitado ele começa a falar de hipnose e me pede total concentração e comprometimento, então ao fechar os olhos ele liga baixinho um som em seu computador, é um som muito baixo e tenho que me concentrar para escutar. O barulho de uma televisão sem sintonia e o silêncio seguido de um trinco de porta sendo girado, tudo isso de forma cadenciada e sua voz a embeber meus ouvidos ao falar - Respire lentamente, respire...

O suor vem frio como sempre, mas não deixo de respirar e manter minha concentração. Percebo o tremor e tensão habitual de minha espinha, porém a respiração mantem minha concentração. O blecaute vem, mas dessa vez chega mansinho pedindo passagem e me leva a um longo sonho.

O sono me carrega pela minha vida e tudo vem ao contrário, hora em câmera lenta, hora acelerado e bem friamente consigo sentir minha respiração, sinto minha mente em conexão com o corpo, mas ao mesmo tempo separado e os sentimentos chegam devagar, as memória giram em círculos tempestuosos e eu me decido por uma em particular que chama minha atenção.

Existe temor, mas avança friamente e sinto medos primitivos como de uma criança. Lá estou eu com meus quatro anos de idade.

Morei durante toda minha vida em um bairro típico de cidade grande, com muitos apartamentos e estabelecimentos comerciais tornando as ruas um mar de gente circulante. Era possível observar o tudo que acontecia lá em baixo da sacada do apartamento que se localizava no décimo segundo andar.

Meus pais eram viciados em trabalho. Meu velho trabalhava em um escritório bem no meio do centro comercial e mantinha sempre a mesma rotina – Sair cedo e chegar ao final da noite - minha mãe era professora universitária e vivia com seus livros e alunos. Não eram pais ruins, mas assim que foi possível trataram de arranjar alguém para cuidar de mim.

Como poderia me esquecer daquela senhora de nome chamativo, Madame Mazu era como gostava de se identificar. Devia ter por volta de uns cinquenta anos de idade e sempre chegava ao inicio da manhã tossindo e pigarreando de forma grosseira, abafava o cheiro do cigarro de suas vestes ao fechar a porta, minha mãe não dava muita importância e se despedia de mim saindo em seguida.

Era uma senhora de olhar vago, mas sorriso profundo e adorava me contar histórias, porém muitas vezes perdia o tom e não media esforços em atazanar meu juízo ao me contar contos horrendos que justificava dizendo que menino bom tinha que ser corajoso e não um mela cuecas.

Uma vez contou-me muito jovem havia engravidado de um rapaz que recusou com ferocidade a ideia de paternidade, amaldiçoou a criança e viajou para bem distante. Infelizmente na mesma noite em que tomou o rumo do mundo, foi atropelado por um caminhão e faleceu. Após isso seu espírito passou a atormentar as noites de Mazu até que finalmente conseguiu o fazer sua maldade, com sete meses de gravidez ela perdeu sem menininho e contou ter sido um aborto cheio de sangue e dor.

Imagine então como uma criança da minha idade deve ter reagido aquilo, passava as madrugadas sonhando com o bebê morto e com o espírito do falecido a me chamar:

- Vou te pegar, vou te pegar...

Eu sempre acordava ensopado de suor, deitado na minha rede e percebia a noite que demoraria a findar. Ficava de olhos entreabertos durante horas escutando os ruídos noturnos que aparentavam ter a mesma sonoridade da voz daquele ser cruel que me chamava em sonhos e foi assim que descobri como a noite pode ser perturbadora para uma criança indefesa.

Por muitas vezes contei a minha mãe sobre o espírito e ela dizia ser bobagem, que eu não precisava ter medo de coisas que já partiram e que madame Mazu só estava brincando comigo.

Sempre no inicio da tarde após terminar de almoçar Mazu tinha o costume de me levar para a rede e me pegar pelos braços, dizia que se o seu filho fosse vivo o colocaria para dormir daquela jeito.

Embalava a rede de forma suave e tranquila, balançando para lá e para cá e me lembro de adorar aquele movimento. Não gostava, porém do seu cheiro característico de fumaça de cigarro impregnado nas vestes e quando sentia minha cabeça contra seus peitos, percebia que exalava um cheiro intenso de álcool pelo suor.

Observava cada gota de suor trilhar o caminho de sua testa até o final bem elaborado daquele par de seios gigantes que eram guardados por um sutiã bege e velho. Sempre me cantava boas canções até a hora em que eu pegava no sono e ela ia para a sala assistir a televisão. Sabia que era trocado pelo aparelho televisor porque tinha um sono muito leve e não bastavam dez minutos para que eu já estivesse de olhos abertos pensando no espírito de me contara e que já atormentava minha imaginação.

É provável que tenha cometido algum delito que a deixou magoada, pois chegou um dia em que aprofundou a história sobre o pai de sua filha, e aqueles detalhes elevaram meus medos de uma maneira que não imaginava ser possível, senti um arrepiar na espinha quando ela falou:

- Escute bem o que vou te contar pequenino, disso você não vai poder esquecer. Ontem descobri uma coisa muito ruim e preciso te contar – ela contava cada palavra com riqueza labial e intencional – Ele está morando nessa casa, escutei sua voz estridente dias atrás e fiquei com medo de te contar. Ele dorme em cima desse guarda-roupa – E apontou para cima da minha rede bem na direção do móvel.

Questionava constantemente Mazu ao passar dos dias sobre o que fazer para que ele não causasse nenhum mal e ela sempre me dizia que o melhor caminho era ser um menino corajoso e acima de tudo nunca contar nada daquilo para ninguém. Segundo ela, o espirito havia lhe dito que mataria toda pessoa que soubesse de sua morada.

As minhas noites de sono se tornavam noites de tormenta e pavor sem fim, não conseguia pregar o olho com medo de ele me machucar e agora já não podia mais revelar isso aos meus pais, já que não queria que fossem mortos.

Todo ruído produzido pela madrugada era de rachar em meu coração e se transformava em passos ou sussurros daquele ser maligno, passei a escutar seus assobios também.

E parecia que ela gostava de me ver com medo e agonia, sentia prazer naquela sensação e passou a entoar uma canção macabra enquanto me embalava na rede:

- Dorme dorme meu menino meloso, dorme quietinho que o capeta vem te pegar, não abre os olhos de fininho que faca grossa ele vai usar para te cortar, vai dormindo de mansinho para teus olhos e os meus ele não levar, dorme, dorme...

E repetia vorazmente essa canção, até ter certeza que meu sono havia chegado. Então saia do quarto e ligava o aparelho televisor.

Com meu sono raso rapidamente estava de olhos entreabertos escutando o barulho da televisão. Ficava acuado dentro da rede, pálido de medo, contraindo-me todo para não urinar na cueca e olhando para aquele maldito guarda-roupa, para a morada daquele ser cruel.

Os dias se passavam e a cena se tornara rotineira, ela me cantava aquela canção macabra e me punha a dormir mesmo a contragosto, ficava horas acuado na rede até a minha mãe finalmente chegar do trabalho e saia correndo em disparada para seus braços sem conseguir contar sobre o espirito no guarda-roupa.

E em uma tarde quente ele finalmente apareceu. Estava eu somente de cueca dentro da rede, com o suor pingando a testa e o ventilador batendo em meus cabelos, quando tive a primeira visão daquele ser diabólico.

Escutei a televisão ser desligada e tentei gritar por Mazu, mas nenhum som vazou de meus lábios e então com um ranger agudo a porta do quarto se fechou suavemente e seu trinco ser fechado.

Assim como enxofre, um cheiro forte de fumaça impregnou o quarto, não tive coragem de sair de dentro da rede e muito menos de olhar, fiquei escondido por debaixo do lençol, sabendo de sua aproximação. Sua respiração era pesada e cansada, com pigarros longos e graves.

Com a porta do quarto fechado, tudo ficava particularmente escuro e mesmo sendo dia, aquilo dificultava de minha visão, o espírito inclinou-se lentamente sobre a rede e eu paralisado pelo medo observei em silêncio ele consumir o espaço.

Era grande e escuro, com dentes amarelados que brilhavam mesmo na escuridão, podia sentir seu umbigo roçando em minha barriga, era pontudo e derramava um liquido viscoso que exalava odor de gordura envelhecida. Quanto mais via seu corpo projetar-se contra o meu sentia um calafrio doloroso percorrer minha espinha como veneno de serpente.

Podia sentir sua protuberância abdominal que balançava sobre mim enquanto respirava vorazmente. Sua bocarra de dentes amarelos mordeu meu ombro direito e senti sua baba escorrer pela rede enquanto as lágrimas de percorriam meu rosto. Seu braço foi criando raízes e se fechando na rede como um casulo. Aquela fétida gordura umbilical foi ficando pontuda e começou a machucar meu abdome, fui ficando cada vez mais fraco, até que minha visão apagou. Blecaute.

Acordei com minha mãe me perguntando onde estava madame Mazu, aparentemente a velha tinha sumido sem dar notícias. Fiquei em choque e não disse nenhuma palavra, em minha cabeça aquela dúvida pairava – Teria o espirito do falecido carregado Mazu para o além?

Acordo lentamente com um sensação de leveza pelo corpo, a sala ao meu redor me leva a crer que não estou mais tendo uma lembrança do passado. Reflito dentro de minha cabeça enquanto o psicólogo silenciosamente me encara e faz suas anotações.

Minha infância passou e nunca consegui falar sobre o que aconteceu com ninguém, nunca tive coragem de descobrir o destino de Mazu e muito menos se o ser diabólico ainda habitava meu guarda-roupa. Estou eu aqui nesse divã e sinto que finalmente passei a história para frente. O psicólogo provavelmente deve achar que tudo é produto de minha imaginação, mas sei que o espirito está por ai, talvez ainda degustando dos restos de Madame Mazu ou atrás de outros garotos. Tudo que eu desejo para o momento e não ter ataque de pânico toda vez que escuto uma televisão desligar e um trinco de porta se fechar.

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